O teto e a raça: o que dizem os números

O teto e a raça: o que dizem os números

agosto 19, 2020 Off Por Today Newsroom

Desigualdade, pobreza
Getty Images

Pegando carona no movimento que justificadamente se formou na esteira do assassinato de George Floyd, em Minneapolis, a última investida contra o controle de gastos públicos no Brasil tenta associar tal política ao racismo.

Afirma-se que as medidas de contenção das despesas, expressas em particular no teto constitucional, limitam os gastos sociais; logo, afetam os mais pobres.

Como nada menos do que 10,1 milhões dentre os 13,5 milhões de pobres no país em 2018 são pretos ou pardos (ou seja, 75% da população pobre, bem mais do que a participação de pretos e pardos na população em geral, 55,8%), segue-se que a limitação de gastos sociais oriunda do teto afeta mais este grupo. Portanto, o teto de gastos é racista, QED.

O silogismo é impecável; já a hipótese central – a saber, a limitação dos gastos sociais – não se sustenta à luz da evidência existente.

A tabela abaixo apresenta o conjunto das despesas do governo central, calculado segundo metodologia do Manual de Estatísticas de Finanças Públicas do FMI, mas por uma ótica distinta daquela que normalmente apresento neste espaço (voltarei a ela mais à frente), destacando no caso a despesa por função de governo, e não pela natureza do gasto.

Os dados são apresentados para os anos de 2010 (início da série), 2016 (ano de adoção do teto de gastos) e 2019 (o mais recente), a preços constantes de 2019, usando o deflator implícito do PIB.

Houve, como se nota, redução visível da despesa total entre 2016 e 2019, expressa em queda de R$ 24 bilhões no período.

Tal diminuição, porém, resulta essencialmente da forte contração de gastos com juros brutos (nesta terminologia apresentados como “transações da dívida pública”), de R$ 677 bilhões em 2016 para R$ 518 bilhões em 2019, corte de quase R$ 160 bilhões no período.

Já os gastos primários aumentaram R$ 135 bilhões entre 2016 e 2019. Metade disso foi direcionado à rubrica de “proteção social”, que engloba desde previdência à assistência social. Em 2019 esta rubrica representou 39,3% dos gastos do governo central; em 2016 equivalia a 36,2% do total.

Outros gastos tipicamente descritos como “sociais” aumentaram no período, como “saúde” (aumento de R$ 10 bilhões), “habitação e serviços comunitários” (R$ 2 bilhões a mais), ou ficaram virtualmente estáveis, como no caso de “educação” (queda de R$ 80 milhões).

Vale dizer, não há qualquer evidência de que o teto de gastos tenha implicado redução das despesas sociais no país; ao contrário, os dados registram aumento considerável desde a adoção do mecanismo.

Já a tabela abaixo mostra as despesas do governo central por natureza, como “remuneração de empregados”, “uso de bens e serviços” etc., já apresentadas ao leitor em colunas anteriores (lembrando que “aquisição de ativos não financeiros” é um nome complicado para o investimento público).

Há, é claro, forte sobreposição mesmo sob óticas distintas: o aumento de R$ 74 bilhões em benefícios sociais, por exemplo, é quase todo destinado à proteção social. Já outros casos revelam dinâmicas interessantes, com apelo social bem mais baixo.

Por exemplo, do aumento de R$ 25 bilhões em remuneração de empregados, R$ 10,7 bilhões foram destinados à educação, enquanto o total das despesas em educação ficou – como vimos – praticamente estável, indicando que provavelmente os prestadores de serviços se beneficiaram mais do que seus usuários.

Já no que se refere à saúde, a remuneração de empregados respondeu por 40% do aumento do gasto, enquanto proporções ainda maiores são observadas no caso de defesa e ordem pública.

Como deve ficar claro a partir dessas observações, o teto de gastos não impediu a expansão das despesas de proteção social, muito pelo contrário.

Não evitou, todavia, que grupos mais bem localizados junto aos centros de poder conseguissem aumentar a extração de renda do restante da sociedade, em particular o funcionalismo.

De fato, segundo dados da PNAD, o rendimento médio real dos estatutários nos últimos 12 meses é próximo a R$ 4,3 mil/mês, mais de duas vezes maior que o de todas as demais categorias, pouco superior a R$ 2 mil/mês.

Curiosamente, porém, a resistência a reformas que reduzam os gastos com o funcionalismo sempre foi forte nos grupos autodenominados progressistas, como no caso da previdenciária e, mais recentemente, a administrativa.

Segundo trabalho de Tatiana Silva e Josenilton Marques da Silva, negros compunham apenas 40% do funcionalismo federal em 2012.

Houvesse, portanto, preocupação real com políticas que prejudicam a população negra, os “progressistas” deveriam estar na linha de frente pela reforma, mas ainda não tive a chance de vê-los lá.

Em resumo, além do impacto da instabilidade macroeconômica sobre os mais pobres, tema já explorado por outros analistas, o exame dos dados disponíveis não indica que o teto de gastos tenha impedido o avanço dos gastos sociais.

Ao mesmo tempo, propostas de reformas para conter gastos obrigatórios, principalmente no que se refere ao funcionalismo, reduziriam também a desigualdade racial no país.

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