Greve de entregadores e reclamações de restaurantes: os conflitos por trás dos aplicativos de entrega como iFood e Rappi

Greve de entregadores e reclamações de restaurantes: os conflitos por trás dos aplicativos de entrega como iFood e Rappi

julho 1, 2020 Off Por Today Newsroom

Entregador do iFood
(Shutterstock)

SÃO PAULO – Nesta quarta-feira (01), os entregadores de aplicativos de delivery realizam uma greve nacional, que reivindica melhores condições de trabalho e mudanças na forma de pagamentos das principais empresas do setor, como iFood, Rappi, James, Loggi e Uber Eats.

As insatisfações ganham os holofotes em um momento em que a entrega em domicílio está muito popular. Com a pandemia e o isolamento social, o share de delivery no mercado como um todo subiu de 9% em abril de 2019 para 32% em abril de 2020, segundo o Instituto Food Service Brasil (IFB).

“O uso extensivo dos serviços de entrega fez com que a demanda crescesse e, com o recuo dos empregos formais, muitos trabalhadores entraram nesse mercado de trabalho. Como a oferta inflou, a precarização ficou ainda maior”, explica Paula Almeida, professora de Direito do Trabalho.

Paula é uma das responsáveis pela pesquisa “Condições de trabalho em empresas de plataforma digital: os entregadores por aplicativo durante a Covid-19”, feita pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (uma parceria entre a Unicamp e outras universidades), com 252 entregadores de 26 cidades, entre 13 e 20 de abril.

Os resultados mostram que 57,7% dos entrevistados não receberam nenhum apoio das empresas para diminuir os riscos de contaminação no trabalho. E 83,2% relatam que têm medo de se contaminar durante a execução do serviço, o que “evidencia o forte grau de tensão e de ansiedade que gira em torno do trabalho”, segundo os pesquisadores.

Diante desse cenário, os grupos que integram o movimento #BrequeDosAPPs pedem aumento do pagamento das corridas por quilômetro rodado, seguro de vida, seguro contra roubo e acidente, distribuição de EPIs (equipamento de proteção individual) e o fim dos bloqueios e desligamentos indevidos.

“Essas empresas se instalaram no Brasil e vêm trazendo o caos e a precarização do nosso setor porque elas não cumprem nenhuma lei existente, nem o que já está na  Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Nem as municipais (como a 14.491 no caso de São Paulo), nem a nacional (lei 12.009), que regulamentam o exercício da nossa profissão”, diz Gerson Silva Cunha, presidente interino do SindimotoSP (Motoboys e Entregadores).

A manifestação em São Paulo, um dos principais focos da paralisação, seguirá até o Ministério Público do Trabalho (MTP), no bairro do Paraíso. Os organizadores vão encerrar o ato com a entrega de Carta Aberta ao MTP, que pede a celeridade de ações que reconhecem o vínculo empregatício entre motoboys e aplicativos de entregas.

Drama dos entregadores

Apesar de a situação precária se intensificar na crise, Paula Almeida reforça que o Brasil segue negligenciando o papel da sua força de trabalho. Segundo ela, a invisibilidade institucional, sobretudo na área de serviços, e o recuo das vagas formais contribui para esse cenário em que mais pessoas entram no mercado informal sem que haja uma estrutura de proteção social e do trabalho para esse grupo.

Durante a pandemia, 56,7% dos entregadores disseram trabalhar mais de nove horas diárias – dentre eles, 19,3% trabalham entre 11 e 12 horas por dia; 11,48% entre 13 e 14 horas; e 7,4% quinze horas ou mais. E 78,1% dos entrevistados trabalham seis ou sete dias na semana. Mesmo com o aumento da demanda e das horas trabalhadas, 59% registraram queda da remuneração em relação ao período anterior à pandemia.

Antes das medidas restritivas, 47% dos entregadores recebiam até R$ 520 por semana, mas com a pandemia o percentual saltou para 72%. Isso aconteceu, segundo o grupo, por conta da redução do valor da hora de trabalho e bonificação durante a pandemia.

Um dos fatores que explicam esse cenário, para Paula, é o modelo de negócio aplicado por essas empresas, que utiliza inteligência artificial para criar algoritmos que ditam o ritmo de trabalho, ao mesmo tempo em que utilizam desses artifícios para se eximir da responsabilidade social e do vínculo empregatício.

“São pessoas que rodam mais de nove horas diárias, sete dias da semana, sem folga semanal e ainda assim há grandes indícios de queda na remuneração. Essa empresas usam tecnologias para realizar ponderações que indicam o cenário de menor custo para realização da entrega. E, sem alternativas, os entregadores continuam rodando para ganhar um valor suficiente para manter seu custo de vida”, explica a pesquisadora.

Contas a pagar

Júnior Henrique é entregador e conta que os pagamentos durante a pandemia estão ainda mais baixos. “Hoje, na média, recebemos R$ 1 por quilômetro rodado. Precisa trabalhar muito. Antes, esse valor era de R$ 3 mais ou menos. Mas com a pandemia as coisas ficaram ainda piores. É praticamente trabalho escravo”, diz.

Ele ganha cerca de R$ 2.400 bruto por mês, trabalhando, em média, dez horas por dia, de segunda a domingo. “Desse valor ainda tiro gastos com a moto, gasolina, almoço…Não sobra muito”.

Apesar da insatisfação, Henrique disse que não vai participar da paralisação porque o iFood informou que, especialmente nesta quarta-feira, entre 10h e 21h todas as corridas terão um valor extra de R$ 30.

“Eu preciso do dinheiro, não posso parar e é uma oportunidade de ganhar um pouco mais. Os aplicativos vêm cortando benefícios há algum tempo. Não tem mais plano de saúde, seguro, parceria para alugar bicicletas mais baratas”, explica. Ele trabalha com iFood, Rappi e Uber Eats.

Veja a foto que ele compatilhou com o InfoMoney:

Regulamentação 

Alexandre Machado, especialista em varejo e sócio diretor do Grupo GS& Gouvêa de Souza, considera a relação das empresas com os entregadores delicada. “Até onde vai a responsabilidade da empresa se não há vínculo empregatício? O assunto precisa ser discutido para que o setor seja regulamentado e se transforme em algo mais profissional, com mais segurança jurídica para os profissionais”, diz.

Para ele, mais regras são necessárias. “Vejo um caminho na direção da regulamentação. Mas por outro lado, a tecnologia tem barreira de entrada baixa. Qualquer grande empresa que se juntar e desenvolver uma solução específica para o seu negócio tem espaço. O Grupo Pão de Açúcar (GPA) fez isso ao adquirir o James e não depender de outras plataformas”, explica.

Oligopólio no setor e os restaurantes

Tanto as questões apontadas pelo entregadores, quanto os problemas relatados pelos restaurantes têm raiz no mesmo problema: o oligopólio do setor, segundo Machado. “Poucas empresas concentram uma fatia significativa do negócio de delivery e cobram taxas que, muitas vezes, não cabem no orçamento dos restaurantes”.

Com a pandemia, a questão se agravou, já que o serviço deixou de ser conveniência e passou a ser necessidade. “O delivery não é o serviço, a vitrine do aplicativo é. A exposição que você tem no iFood, Rappi e outros é muito maior do que se não estiver por lá. A visibilidade levou os restaurantes a criarem uma dependência do serviço e, assim, as empresas ditam as regras do jogo”, diz.

O iFood cobra os restaurantes de duas maneiras: uma taxa de 12% por pedido para estabelecimentos que fazem suas próprias entregas; ou uma taxa de 27% para os que utilizam a entrega da plataforma – em ambas as modalidades há uma mensalidade de R$ 130.

Uma empreendedora que possui duas cafeterias na Baixada Santista, litoral de São Paulo, e que preferiu não se identificar, afirma que não costumava usar tanto o delivery, mas o serviço se tornou a ser essencial desde o início da crise.

“Optamos pelo iFood porque traz uma boa exposição para atrair clientes de forma rápida em um momento difícil. É prático para o cliente. Mas as taxas são altas, pagamos o aplicativo porque ainda achamos que eles nos dá vantagens em volume de pedidos – e deve acontecer isso com vários negócios, por isso eles cobram o valor que quiserem”, diz.

Rodrigo Facal, dono da casa de carnes Fuego Celeste, na Vila Mariana, em São Paulo, considera os aplicativos um “mal necessário”. “Meu negócio não foi feito originalmente com a ideia da entrega porque a matéria-prima é cara e a experiência muda. Mas com a pandemia tive que aceitar os termos do iFood e me decepcionei. A plataforma é precária e sempre dá problemas. Infelizmente, preciso do serviço, mas me considero um escravo dele e não um parceiro”, afirma.

Wallace Pires, empreendedor que possui um food truck de salgados como coxinhas e quibes, avalia a situação de forma diferente. “Acho que o iFood não é para todo negócio. Cada empresário precisa avaliar a possibilidade e ver se há sinergia entre o que a empresa oferece e que ele produz”, diz.

Segundo ele, que trabalha com o iFood há mais de quatro anos e intensificou a relação durante a pandemia, vale muito a pensa a exposição na plataforma. “Nesse momento difícil eu não estaria tão exposto se tivesse uma equipe maior atendendo via WhatsApp”, exemplifica.

Um print enviado por Takahiro ao InfoMoney comprova:

Apesar de todos os problemas, Machado ressalta que as empresas de entrega estão muito bem posicionadas hoje. “Quem tem a base de clientes é o iFood, Rappi, Uber Eats. O cliente, portanto, é da plataforma e não do restaurante. É bem esperto. As empresa têm o principal ativo que é o consumidor. E isso tem uma valor absurdo na hora de uma fusão ou eventual venda. Sem contar que o setor está longe de está maduro, tem muito o que crescer e desenvolver”, afirma.

Entrega por conta própria

Machado lembra que, no passado, os estabelecimentos tinham o modelo de delivery “analógico”. “O cliente ligava no restaurante, fazia o pedido e recebia em casa com um frete mais plausível, menos de 10%, no geral. Hoje é muito mais caro. E para desenvolver sua própria entrega é preciso ser relevante, se não é ‘voo de galinha’. A praticidade do aplicativo é indiscutível”, afirma.

“É o consumidor que define essas tendências. Se você não está jogando esse jogo, vai ficar de fora”, complementa Machado.

Na contramão do consenso, Willian Takahiro, dono de dois bares, Izakaya Donchan e Izakaya Kintaro, nos Jardins e Liberdade, em São Paulo, optou por se desvencilhar de serviços de delivery e montou uma operação própria.

“Quando a crise começou, fiz uma pesquisa para entender as alternativas. Passei por iFood, Rappi, Uber Eats…Em algumas delas, a taxa chegava a 30% por pedido e para o meu negócio não é viável. Não achei justo comigo, nem com os entregadores. Por isso, me organizei internamente e contratei entregadores para levarem os meus pedidos direto ao destino”, diz.

Ele entende que pode perder clientes, mas foi uma escolha. “Pela comodidade que os aplicativos oferecem posso deixar de atrair mais pessoas, mas tenho clientes que, inclusive, me falaram que pedem com a gente justamente porque o contato é direto”, afirma Takahiro.

Outro lado

Diante das informações, o InfoMoney entrou em contato com o iFood, Rappi, Uber Eats, Loggi e James para perguntar quais são as taxas cobradas por cada um e pedir um posicionamento sobre a situação do setor em meio à pandemia. Até a publicação da matéria, apenas Rappi, iFood e James se posicionaram.

Sobre a manifestação e as condições de trabalho dos entregadores, o Rappi afirmou que reconhece o direito à livre expressão e busca continuamente o diálogo com os entregadores de forma a melhorar a experiência oferecida a eles.

“Aumentamos nosso time de atendimento, com priorização do contato com o entregador, oferecendo suporte 24×7 por meio do aplicativo. Além disso, oferecemos, desde o ano passado, seguro para acidente pessoal, invalidez permanente e morte acidental; e diversas parcerias”, diz a nota. Ainda, a empresa promete novos benefícios devem ser adicionados e comunicados em breve.

Em relação a valores, o Rappi afirma que seu frete varia de acordo com o clima, dia da semana, horário, zona da entrega, distância percorrida e complexidade do pedido. “Dados da empresa mostram que cerca de 75% deles ganham mais de R$ 18 por hora, quando ativos em entregas, e quase metade dos entregadores parceiros passam menos de uma hora por dia conectados no app”.

O James Delivery, que pertence ao Grupo Pão de Açúcar, se limitou a dizer que criou um mecanismo de gorjeta em dobro, com o qual estimula que o cliente dê gorjeta para o entregador do seu pedido, como forma de agradecimento pelo trabalho. “E o James paga o mesmo valor a mais para esse parceiro. A ideia é uma forma de reconhecimento da atuação dos entregadores autônomos”, diz a nota.

Em nota, o iFood informou que o valor médio das rotas é de R$ 8,46, e que todos os entregadores ficam sabendo do valor da rota antes de aceitar ou declinar a entrega. O valor é calculado a partir de fatores como a distância percorrida entre o restaurante e o cliente, uma taxa pela coleta do pedido no restaurante e uma taxa pela entrega ao cliente, além de variações referentes a cidade, dia da semana e veículo utilizado para a entrega

“Em maio, o valor por hora trabalhada dos entregadores foi de R$ 21,80. Para fins de comparação apenas, esse valor é 4,6 vezes maior do que o valor por hora tendo como base o salário mínimo vigente no país. Pelos dados do iFood, os ganhos médios mensais do grupo que têm a atividade de entregas como fonte principal de renda (37% do total) aumentaram 70% em maio quando comparados a fevereiro”, disse a empresa.

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