Clube-Estado: a compra do Newcastle e por que o Brasil é um destino distante

Clube-Estado: a compra do Newcastle e por que o Brasil é um destino distante

outubro 10, 2021 Off Por Today Newsroom

Na semana que passou, o assunto mais comentado no mundo do futebol foi a chegada do fundo de investimento soberano da Arábia Saudita ao futebol ao comprar participação no Newcastle United, tradicional clube inglês que vinha em baixa esportiva há muitos anos. Seguindo passos dos fundos soberanos do Qatar e de Abu Dhabi, que controlam PSG e Manchester City respectivamente, os sauditas miram o futebol como uma tentativa de transformá-lo em relações públicas do país.

O futebol pode ser uma caixinha de surpresas no campo – e até dentro das quatro linhas cada vez menos, na verdade – mas fora dela não precisa muito para reconhecer alguns enredos, e o caso do fundo soberano saudita já é conhecido e reconhecido mundialmente.

Trata-se da conhecida estratégia de “sportswashing”, que é utilizar o esporte para melhorar a percepção geral sobre determinada pessoa ou país.

Bilionários de todos os tipos usam o futebol para esses fins. Afinal, trabalhar para o bem do esporte mais popular do mundo é uma boa vitrine e dá certo status.

Investir em futebol é uma decisão que demanda conhecimento de mercado. Dá para ganhar dinheiro se entender como a roda gira. Falamos de Europa, naturalmente. O futebol não é um negócio para retornar investimentos via pagamento de dividendos. A indústria tem como característica o “Exit Profit”, cujo conceito é comprar barato, organizar, fazer crescer e vender mais caro. Em tantas outras colunas já falei sobre isso, mas é sempre bom lembrar.

Negócios assim demandam um mercado maduro. Não é à toa que tantas transações ocorrem na Europa, acostumada a este tipo de negócio. É preciso que haja clubes negociáveis, compradores, vendedores. Por isso, quando falamos do Brasil, essa é uma realidade ainda distante.

Ou seja, dá para ser feliz investindo em futebol, desde que se saiba onde e como. Não é o caso dos sauditas, de quem não se espera que entrem no futebol para lucrar com compra e venda de clubes, mas sim lucrar com uma imagem melhor.

Falando especificamente do negócio, o Newcastle United foi comprado por cerca de € 350 milhões. Trata-se de um clube que antes da pandemia faturava algo como € 190 milhões anualmente, o que dá um múltiplo de 1,84x a receita, que é um número que tem se repetido com frequência no futebol. O Newcastle é um clube organizado, controlado de forma espartana (e com poucas dívidas) por Mike Ashley há 14 anos. Mas isso não atraia a simpatia dos torcedores.

O desempenho do clube nos últimos 12 anos foi pouco animador, fazendo com que os torcedores cobrassem mais do acionista. Afinal, não importa em que lugar do mundo ele viva: o torcedor quer vencer. Óbvio que todos sabem a importância de manter as contas em dia, mas vencer e se manter equilibrado é o sonho de nove em cada dez torcedores, porque ainda existem alguns desavisados que acham que vencer a qualquer custo é o que importa. Depois choram as pitangas e reclamam dos dirigentes perdulários.

Nesse período, o clube só conseguiu boa colocação em 11/12, quando terminou na 5ª posição. Em duas temporadas, foi rebaixado para a 2ª divisão. Motivos pelos quais os torcedores não nutriam simpatia por Ashley.

Agora, nas mãos de um fundo cujo principal acionista, o reino da Arábia Saudita, tem cerca de € 400 bilhões em ativos, os torcedores do Newcastle sonham com equipes imbatíveis, mesmo depois de passarem anos questionando os movimentos do Manchester City e do Chelsea. Fale mal do que você gostaria de ser, diria o filósofo.

Ainda que o fundo já tenha avisado que o processo será de construção, sem criar grandes expectativas, na prática ele recebe um clube tão organizado que pode fazer até € 250 milhões em investimentos sem ferir as regras do Fair Play Financeiro da Premier League que, de forma bastante generosa, permite que os clubes possam ter até € 125 milhões de prejuízos acumulados na soma dos últimos três anos. Como era um clube equilibrado, há enorme espaço para gastar, e é isso o que os torcedores esperam.

Como efeito colateral, caso essa gastança seja confirmada, passaremos a ter um potencial sétimo clube com grande potencial competitivo na Premier League, o que atrapalha não apenas os outros seis que costumam ocupar as principais colocações, mas especialmente os menores, que operam dentro de possibilidades bem mais modestas, ainda que enormes se comparadas a outras ligas. Mais um tema que precisará ser debatido num futuro próximo pelos órgãos de controle do futebol mundial.

No Brasil?

Li e ouvi algumas vozes que já alardeiam que teremos isso no Brasil em breve. Menos, bem menos. O futebol brasileiro ainda está engatinhando na transformação das associações em empresa, e precisa passar por um processo de reorganização antes de vermos sheiks e bilionários aportando dinheiro aqui. Ninguém vai torrar dinheiro bom para pagar contas antigas e ruins.

Além disso, temos um movimento semelhante que é a presença da Red Bull no Bragantino, que erroneamente é comparado aos chamados clubes-estado. A empresa de energéticos tem como política entrar no esporte para expor sua marca como vencedora e prioriza as conquistas. É marketing puro. Acontece na MLS, na Alemanha, na Áustria e, agora, no Brasil. Mesmo assim, a opção foi por iniciar com elencos jovens e potencial de negociação, e não contratando atletas caros.

Veja que isso não tem nada a ver com a política do PSG e do Manchester City, por exemplo. No caso dos qataris não houve expansão, e o PSG continua único. No caso do City Football Group a opção foi por criar clubes formadores, para girar atletas e formar com a qualidade esperada. Não há clube do City que tenha se tornado vencedor onde se instalou.

Por que raios seria assim no Brasil? Considerando que o motivo é fazer sportswashing, qual o benefício em conquistar campeonatos no Brasil e na América do Sul, cujo impacto mundial é quase zero? O investimento de países em futebol está associado a questões geopolíticas que não envolvem a região. Esses investidores querem ser reconhecidos por serem donos de clubes que conquistam competições de alcance global, com fãs globais.

O Brasil terá como primeiros movimentos a entrada de investidores interessados em aproveitar que há enormes fragilidades de governança para desenvolver clubes. Mas só isso não resolve se não houver um produto a ser trabalhado, uma marca a ser explorada enquanto competição, e que permita vender o futebol brasileiro e não o clube A ou B.

É possível que o City Football Group chegue ao país e repita a mesma estratégia, seguir com investimentos em formação e não transferindo Sterling e Foden para o clube brasileiro conquistar a Libertadores.

Por enquanto, é um problema para os clubes menores da Inglaterra e para a turma que briga nas competições europeias. No Brasil, ainda seguiremos os acompanhando pela TV.

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