O Brasil planejou ser desigual e, infelizmente, conseguiu
julho 21, 2020O ano de 2278 será histórico para o Brasil. Será neste ano que, segundo o PISA, o programa internacional de avaliação do aprendizado, os alunos brasileiros irão atingir o mesmo grau de proficiência em leitura dos alunos de países ricos. Por sorte, logo em 2093, segundo o mesmo PISA, teremos o mesmo grau de habilidades em matemática.
A despeito do que possa parecer, a ideia de que educação é um fator relevante para explicar a renda ou a desigualdade de um país não é tão antiga. De fato, Jacob Mincer, economista polonês, escreveu seu mais conhecido trabalho, chamado de “Experiência escolar e renda”, em 1974, quando abriu caminho para um campo que os economistas chamam de “economia do trabalho”.
Por esta mesma década, enquanto Mincer descobria que 1 ano a mais de estudo explicava entre 5 a 10% de aumento na renda dos americanos, o brasileiro Carlos Langoni lançava seu estudo sobre o preocupante aumento da desigualdade no Brasil nos anos de 1960 e 70.
Segundo Langoni, a distribuição da educação havia se tornado mais desigual no país. De fato, o percentual de brasileiros com ensino superior subiu expressivos 255% entre 1965 e 1975, enquanto o acesso ao ensino básico pouco mudou. Sua sugestão? Focar em investimentos no ensino básico, que como lembrou Marcos Lisboa ao tratar da atual mudança no Fundeb, “renderiam mais do que investir em qualquer setor da economia”.
Ainda que sua pesquisa tenha tido grande importância na época, o país só se voltaria para o ensino básico duas décadas depois, quando mais de um século após países como França, Alemanha e Suécia, chegaríamos na chamada “universalização da educação”.
Como você já deve ter notado, colocar alunos na escola é apenas metade do caminho, é preciso também melhorar as condições. Como você também já deve ter reparado, isso não se resume a aumentar recursos.
O resultado de todo este descaso é fácil de medir. A renda de um jovem que complete o ensino superior no Brasil pode crescer até 243% em relação a quem não possui instrução alguma, ou 150% em relação a quem concluiu apenas o ensino médio. Já para quem conclui o ensino médio, o ganho é 66% maior em relação a quem não possui educação formal.
Sendo honesto, a palavra “apenas” não é das mais adequadas, afinal, 52,6% dos brasileiros não possuem o ensino médio completo. Ainda hoje, 1 em cada 4 jovens de 19 anos não concluiu essa etapa e ao menos 1 em cada 6 abandonou a escola em definitivo.
Com tudo isso em mente, não é difícil perceber que o Brasil não se tornou o 7º país mais desigual do planeta por uma infeliz coincidência. Foi, como diria Nelson Rodrigues, fruto de muito trabalho e esforço.
Educação, porém, é apenas a parte mais visível dessa equação. Entender a desigualdade brasileira e por que ela é um problema para o país requer ir um passo além, ou atrás no caso, em relação a nossa história.
Antes, porém, é preciso fazer uma distinção. Ao contrário do que possa parecer para os liberais e conservadores fãs da primeira-ministra Margaret Thatcher, nossa maior banda nacional não é o Queen e nossa seleção de futebol não ganhou apenas 1 única Copa do Mundo roubada, ou em resumo, nós não estamos na Inglaterra.
Me refiro a isso, claro, em função da célebre frase da premiê britânica quando acusa o Labors, o Partido Trabalhista inglês, de defender redução da desigualdade tornando ricos e pobres iguais na pobreza.
É possível, e necessário, discutir desigualdade no Brasil sem nos rendermos a discursos fáceis ou panaceias, como o famoso “imposto sobre grande fortunas”, que segundo estudo encomendado pela senadora do PT, Gleisi Hoffmann, arrecadaria R$ 6 bilhões por ano, ou menos de 1% dos gastos previstos para atenuar os efeitos da pandemia atual.
Mais relevante do que falarmos em taxar os ricos, é preciso primeiro parar de entregar dinheiro a eles, algo no qual o Brasil se tornou quase um especialista. Entre 2006 e 2016, muito além dos jatinhos financiados pelo BNDES, entregamos R$ 723 bilhões em subsídios apenas para grandes empresas.
Dar com uma mão e tirar uma fração disso com a outra não irá, portanto, atenuar os problemas de país, ao contrário, irá apenas manter nossa tradição populista.
Ao contrário da utópica igualdade de renda, a igualdade jurídica é factível, e bastante necessária. Como nossa história mostra, pecamos nessa noção há alguns séculos e colhemos hoje os resultados frustrantes de tudo isso.
No ano de 1850, por exemplo, enquanto o tráfico de escravos era vetado pela lei Eusébio de Queiroz, o país aprovava a chamada “Lei de Terras”, segundo a qual, o acesso ao direito de propriedade era negado aos estrangeiros imigrantes. O resultado, claro, não foi outro senão o de levar imigrantes para as lavouras de grandes proprietários rurais, substituindo a mão de obra escrava.
De uma só vez podamos um nascente mercado de trabalho livre, como também impedimos que o país fosse visto como uma terra de oportunidades para trabalhadores imigrantes com alguma qualificação.
Nas cidades, ainda hoje, o acesso a propriedade privada é desigual. Como comenta o economista Paulo Rabello de Castro, há cerca de 15 milhões de residências no Brasil sem o direito de propriedade registrado. Desde planos diretores municipais restritivos até os elevados custos cartoriais, a distância entre ter e registrar a posse de um imóvel no país é gritante entre os mais pobres e a classe média.
Nas contas de Rabello, quando realizou o projeto “Cantagalo”, ajudando a registrar imóveis na favela carioca de mesmo nome, estes imóveis teriam um valor estimado em R$1 trilhão, ou em outras palavras, temos por volta de R$1 trilhão em direitos de propriedade negados aos mais pobres.
Sem garantias, essa população se torna marginalizada no sistema financeiro, sem acesso ao mais básico mecanismo do capitalismo moderno: o crédito. Sem crédito, ou tendo de pagar juros exorbitantes, pequenos negócios são asfixiados logo no começo.
A exclusão de boa parte de população do sistema financeiro porém, não nasceu hoje. Se você tem um pouco mais de idade, talvez se lembre de como era viver em um país com inflação de 80% ao mês. O que você talvez não se lembre, é o quão distinto era o acesso aos mecanismos de proteção contra essa mega desvalorização da moeda.
Enquanto ricos e a classe média conseguiam se proteger via aplicações overnight, a parcela mais pobre da população pagava quase sozinha o peso da inflação, cujo custo variava entre 4 e 6% do PIB. Não por coincidência, o fim da hiperinflação com o Plano Real representou uma queda expressiva nas taxas de pobreza e extrema pobreza, atingindo aí 18 milhões de pessoas.
Excluídos do sistema financeiro e com dificuldade em ter a posse de fato da sua propriedade, os mais pobres no país precisam ainda enfrentar outros desafios, como no caso do mercado de trabalho e na previdência, em que definitivamente igualdade está fora de moda.
Como mostrou o IPEA há alguns anos, cerca de 18% da desigualdade no país é gerada por meio de regras desiguais na previdência. Até o ano passado, por exemplo, um trabalhador de classe média conseguiria se aposentar aos 54 anos, enquanto a parcela mais pobre se aposentava aos 65 anos, por idade (fato que tende a mudar, ainda que lentamente, após a reforma da Previdência).
Para piorar a situação, os que se aposentam antes terminam recebendo mais, em função da contribuição que geraram por serem trabalhadores CLT.
Na média, um trabalhador com registro CLT ganha até 70% mais do que os informais e contribui, junto do empregador, para garantir uma aposentadoria também maior. O problema? Cerca de 45% dos brasileiros não possuem carteira registrada.
As razões, claro, são bastante conhecidas. Registrar um funcionário com todos os direitos garantidos no país significa pagar até 66% do salário em custos trabalhistas. Para cada R$ 1100 que um empregador se comprometa a pagar, ele irá desembolsar R$ 1820.
Considerando o tamanho da maioria das pequenas empresas brasileiras , este valor se torna quase proibitivo. Ao todo, cerca de 70% dos empresários recebem até 3 salários mínimos.
Eis que chegamos em um paradoxo brasileiro. Se você possui uma grande empresa, ou mesmo uma startup, terá de escolher entre contratar mais trabalhadores formais, ou ampliar automação.
Caso escolha pelo primeiro, irá arcar com custos trabalhistas elevados, e invariavelmente terá também processos para lidar na justiça do trabalho. Caso opte por mais automação, terá linhas de crédito subsidiadas pelo governo.
Um caso emblemático disso tudo é o Rio de Janeiro, onde empresas que geraram algumas poucas dezenas de empregos chegaram a receber R$700 milhões em subsídios. Comentei o caso em um artigo de 2016 que você pode ler aqui, caso queira complementar.
No meio do caminho ainda é possível encontrar modelos distintos de contratação, como a famosa PJ, para prestação de serviços. Onde os custos para o empregador e o prestador de serviços são menores, o que por sua vez leva a uma série de trabalhadores que a despeito de prestarem serviço fixo, não sendo juridicamente reconhecidos como empregados.
Como se acesso desigual à propriedade, à educação, ao crédito, a direitos trabalhistas, à aposentadoria e tudo o mais não fosse suficiente, cabe lembrar que a conta dessas desigualdades parte de um mesmo lugar: o Tesouro. O caixa do governo, mantido majoritariamente por impostos sobre o consumo.
Impostos estes que muitas vezes servem para ajudar determinadas indústrias. Ainda assim, os efeitos são distintos mesmo racialmente.
Em um estudo publicado no final de junho deste ano, os economistas Guilherme Hirata e Rodrigo Soares descobriram um dado chocante sobre a desigualdade salarial entre negros e brancos no país. Segundo análise de ambos, a redução na diferença salarial entre 1990 e 2000 foi de 18%, para uma redução de 10% nas tarifas de importações.
Sim, você não leu errado. Mesmo o custo imposto sobre importação afeta a população de uma maneira distinta, e mais uma vez escolhemos a maneira que gera mais custos sociais.
Neste emaranhado burocrático repleto de brechas, vamos criando alternativas para problemas que nós mesmos inventamos, e assim aumentando artificialmente o fosso da desigualdade.
Escolhemos permanecer em um país desigual e ignorar os custos sociais e econômicos dessa decisão.
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