Para o treinador do futebol brasileiro, toda rodada é um risco

Para o treinador do futebol brasileiro, toda rodada é um risco

outubro 18, 2020 Off Por Today Newsroom

SAO PAULO, BRAZIL – OCTOBER 14: Vanderlei Luxemburgo, head coach of Palmeiras reacts during the match against Coritiba as part of Brasileirao Series A 2020 at Allianz Parque on October 14, 2020 in Sao Paulo, Brazil. (Photo by Alexandre Schneider/Getty Images)

Todas as semanas temos alguém sendo demitido, graças aos maus resultados nas últimas quatro ou cinco rodadas. Demitir o treinador é a chave para a recuperação da equipe, afinal, falta um monte de coisas que o novo treinador trará e tudo será resolvido.

O futebol brasileiro não é um moedor de treinadores. Na verdade, o futebol brasileiro está sendo moído na sua própria ignorância.

É muito comum ouvir aqui e acolá que “na Europa se dá mais tempo para os treinadores trabalharem, por isso os resultados são melhores”. Ledo engano, típico de quem não entende a dinâmica de um clube europeu, e provavelmente também não entende a do futebol brasileiro.

Não sou contra a demissão de treinadores. Assim como nas indústrias tradicionais, demitir funcionários de alto escalão que não performam bem é algo comum, ainda que não se repita três ou quatro vezes num ano. Modelos cada vez mais abertos de avaliação, que combinam aspectos quantitativos com qualitativos-comportamentais, ajudam as instituições a medirem com eficiência o desempenho de seus profissionais. E quando ele não vai bem, encerra-se a relação.

Mas é incomum contratar alguém que não tenha nada a ver com a cultura da nova casa. Quando se busca um profissional de fora, um dos grandes riscos é justamente trazer alguém agressivo num ambiente harmonioso, ou um Gandhi para um ambiente de guerra. As culturas são diferentes. É fundamental respeitá-las e considerar o perfil de quem chega.

Nesse sentido, quem contrata se responsabiliza, moral e financeiramente, pelos erros. Tirar alguém de um emprego e seis meses depois demiti-lo é péssimo não só para a imagem da instituição e do profissional mandado embora, mas também do profissional que o contratou. Numa empresa, o poder da contratação também traz responsabilidades equivalentes.

O CIES Football Observatory divulgou um relatório que traz um bom apanhado de informações a respeito da relação entre treinadores e clubes em diversos países do mundo. Com dados acumulados entre 2015 e 2019, o instituto trouxe a quantidade média de treinadores por clube ao longo desses cinco anos, bem como os clubes que mais treinadores tiveram no período. Foram pesquisadas 83 ligas pelo mundo.

A competição que mais trocou treinadores no período foi a primeira divisão boliviana, com nove treinadores por equipe, na média, nos últimos cinco anos. Dá quase dois por temporada.

O Brasil ocupa a 26ª colocação no ranking, com 5,3 treinadores por temporada na Série A, o que dá praticamente um treinador por ano, em média. Número que não é muito distante da Espanha (4,6) mas já é maior que Portugal e México.

Os números da Itália, Alemanha e Argentina estão próximos (abaixo de quatro treinadores por equipe), com franceses e ingleses contratando menos, mais próximos de três por equipe ao longo de cinco anos.

Esses dados mostram que, efetivamente, o Brasil tem como característica a troca constante de treinadores, mas não está muito distante do aclamado futebol espanhol, ainda que bem acima das demais ligas europeias.

Veja, por exemplo, o que aconteceu na Serie A italiana na temporada 2019/20. Ao longo das rodadas, houve 12 trocas de treinadores, a saber:

Foram 12 trocas de treinadores, sendo que o Brescia foi dirigido por quatro treinadores diferentes e o Genoa por três. Cada caso é um caso, mas dos três rebaixados apenas o Lecce manteve seu treinador ao longo da competição, mesmo estando sempre próximo à zona de rebaixamento. Os outros dois rebaixados (Brescia e Spal) trocaram de treinador, sendo que o Brescia fez três mudanças. O Genoa, que se salvou nas últimas rodadas, trocou duas vezes.

Dos demais, Sampdoria, Udinese e Torino estiveram próximos ou na briga contra a Série B, o que mostra que a luta contra a degola traz muito mais instabilidade, naturalmente. Milan trocou na 6ª rodada pelo fato do treinador não entregar o que se esperava e o Napoli trocou no meio do campeonato por uma briga entre Ancelotti, os atletas e Di Laurentiis, presidente do clube. Depois o veterano treinador foi ao Everton e desde então faz um ótimo trabalho no clube inglês.

Não há segredo: clubes que vão mal estão mais propensos às trocas de treinadores. Seja porque o modelo de jogo não encaixou, seja porque há problemas de relacionamento, ou porque os dirigentes querem dar um novo ânimo ao elenco. Nem sempre dá certo. Vide o Brescia, que teve quatro treinadores e nem assim escapou da Série B.

Voltando ao estudo do CIES, também foram relacionados os clubes que tiveram mais treinadores ao longo do período 2015/2019 dentro das 83 ligas pesquisadas:

Não é por acaso que os clubes que conquistaram mais troféus trocam menos de treinadores. Na Europa, os grandes tiveram no máximo dois técnicos no período. O destaque brasileiro é o Grêmio, com três em cinco anos. Na América do Sul, tem também o River Plate, com um único treinador, Marcelo Gallardo.

Mas há casos como Real Madrid, Bayern de Munique, Roma, Chelsea, Arsenal, que tiveram cinco treinadores no período, o que mostra que ninguém está imune a substituições, mesmo quando se conquistam títulos, como nos casos de Real Madrid (Ancelotti, Benitez, Zidane, Lopetegui e Solari) e Bayern.

Agora, o que isso nos diz? Que, naturalmente, as ligas europeias trocam menos porque o processo de contratação é melhor desenhado. Primeiro, possivelmente porque o perfil dos treinadores que atuam na Europa costuma ser mais claro. Até pela formação, que demanda anos de estudo, os treinadores desenvolvem modelos de jogo claros, com métodos de treinamento que costumam ser assimilados mais facilmente pelos atletas. Organização e método. O que não impede erros em clubes como Real Madrid, Barcelona, Bayern. Mas os diminui.

No futebol brasileiro, os treinadores têm maior dificuldade em transformar ideias em jogo. Não sei se por conta da formação – ou a falta dela –, da qualidade dos atletas (que são parte do problema, mas costumamos mantê-los apartados, porque são o grande ativo dos clubes), do calendário. Mas o fato é que o jogo que se pratica no Brasil está defasado em relação à Europa. E parte dessa defasagem é responsabilidade dos treinadores.

No período analisado pelo CIES, o Brasil teve cinco campeonatos, com três campeões diferentes: Corinthians, Palmeiras e Flamengo. E esses ganhadores tiveram cinco treinadores diferentes (Tite, Marcelo Oliveira, Carille, Felipão e Jorge Jesus). A lista de clubes brasileiros com mais treinadores no período conta com clubes que há anos se tornaram coadjuvantes, inclusive o Flamengo, que voltou a ser vencedor a partir de 2019. Seguem a mesma dinâmica dos clubes europeus da parte de baixo da tabela: como não vencem, trocam muito. Muitos, aliás, nem teriam condição financeira de brigar por títulos, mas ainda vivem da ideia de que “a Série A tem 12 candidatos ao título todos os anos”.

Por isso, voltamos sempre à velha equação “Frustração = Expectativa – Realidade”. Como os times não vencem ou vão pior do que a expectativa histórica, trocam os treinadores. Mas daí temos outro problema: os dirigentes e as estruturas de gestão esportiva não sabem escolher treinadores. É comum vermos, numa mesma temporada, clubes com dois ou três treinadores de características diferentes, para trabalharem com elencos incapazes de lhes dar ferramentas de aplicação tática.

Num podcast recente do jornalista Rodrigo Capelo, o ex-atleta Pedrinho e o jornalista Carlos Eduardo Mansur tratam bem do tema, apontando vários problemas de decisão na escolha dos treinadores. Ao excelente programa, acrescento apenas que falta capacidade técnica para muitos treinadores brasileiros, que têm ideias mas não sabem aplicá-las (ou nem ideia tem) e vão para o famoso “Vamos! Vamos!”, típico de quem chega para “apaziguar o vestiário”.

Assim, as conquistas parecem muito mais obra do acaso do que fruto de planejamento. Afinal, não dá para ser campeão todos os anos. Daí, vamos para outro problema: como medir o trabalho de um treinador?

Deveríamos começar pelo processo de escolha. A partir daí, a equipe técnica – se e quando capacitada – deveria poder monitorar e acompanhar se o padrão de jogo proposto e combinado está sendo praticado, e isso vai além de números – fica na percepção de quem analisa. E sim, suportada por números de desempenho. Não resultado puro e simples, aquela coisa de analisar a cada X jogos. Mas saber se o clube está criando chances, além de trocas de passes infinitas e inócuas, se sofre poucos gols porque oferece poucas chances e não porque tem mais sorte que juízo, se usa corretamente o elenco, especialmente os atletas indicados pelo treinador, e por aí vai.

Precisamos, contudo, de profissionais competentes na gestão esportiva, função que na Europa é clara, especialmente nas grandes equipes.

Nota-se, portanto, que trocas de treinadores são e serão sempre uma válvula de escape para clubes em situação difícil, seja porque correm riscos de queda, seja porque não vencem. Mas treinadores são parte do problema, que tem outros componentes, como a capacidade de escolha e gestão dos profissionais do futebol, e atletas efetivamente mais profissionais. Enquanto este processo não for aperfeiçoado, a corda continuará estourando na ponta mais fraca.

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